“A rua, Carol. Vá pra rua e você vai descobrir o que é sair da caixa”. Essa frase soava em meus pensamentos como um eco de onda sonora que parecia não ter fim. Era um clamor para que eu não sucumbisse à superficialidade de ser. Tempos depois, outra frase: “Vá pra rua, a rua ensina”. Mas… que a rua ensina? Que a rua poderia me ensinar? Ela me ensinaria a enxergar a realidade social? Seria isso? Sim. Foi a conclusão mais plausível a qual cheguei. Pensei: Ok, vou para a rua; quero conhecer a realidade.
Passados alguns dias, fui à rua, juntamente com alguns irmãos. Em frente a um hospital, conheci um irmão que é evangelista, que já vive na idade da experiência de suas cãs e, em poucos minutos, aprendi com suas sábias palavras que na rua não existem igrejas: há uma só igreja. E todos nós, como uma só igreja, temos um só objetivo: salvar pessoas por meio do evangelho. A visão da unidade da igreja saltava do plano teórico como sendo uma verdade possível. A seguir fomos contatar as pessoas.
Semblantes decaídos, olhares perdidos, expressões melancólicas, sorrisos pálidos – forçados, que escondiam os verdadeiros sentimentos – pressa, ansiedade, preocupações, estresse, medo… Características e sentimentos perceptíveis à óptica de qualquer observador atento e desacelerado. E não somente ali, tais características são comuns em quaisquer lugares. Mães rogando por seus filhos; esposas que sofrem por causa do marido; adolescentes que não se relacionam bem com os pais; moradores de rua desesperançados; funcionários públicos angustiados com a crise; médicos aparentemente bem-sucedidos, mas com filhos presos em vícios; pessoas que nem sabem o motivo de existir.
Todas precisando de alguém que as ouça, com quem possam desabafar e, quem sabe, obter uma esperança.
Todavia onde estão os que podem ouvir? Onde estão os que podem levar a esperança? A nossa esperança é Cristo – disso sabemos – Ele é a boa-nova do evangelho, Ele é alívio para os cansados (Mt 11:28), mas como eles crerão se não há quem pregue? (Rm 10:14-15) Contudo, naquele dia, nós estávamos lá, ouvindo, pregando, orando, sendo usados pelo Senhor para levar a água da vida eterna aos sedentos (Jo 4:14) e expressando a vida de Deus contida em nós, vasos de barro. Até que chegou o inevitável momento de ir embora. E no percurso de volta, a memória refazia os acontecimentos recentes.
Em um lapso temporal, vi-me em pé, em frente ao espelho do banheiro; sentia-me mal e pesarosa, embora feliz por ter anunciado o evangelho. Fixei o olhar naquela imagem refletida – sim, a venda de meus olhos havia caído – e, na pessoa do reflexo, enxerguei egoísmo, hipocrisia e futilidade. Hipócrita, eu? Não, isso não poderia ser verdade! Mas, infelizmente, era. Como conseguia declarar meu amor ao Senhor, ler a Bíblia, ir às reuniões da igreja (cultos) e, ainda assim, ser incapaz de demonstrar compaixão? Como, poderia eu, falar em amor, se o amor é expresso por meio do apascentar? (Jo 21:17). Desapercebida, caminhava em aceleração constante, todos os dias, sem atentar para as pessoas que estão perdidas como ovelhas que não têm pastor (Mt 9:36).
A rua me ensinou, não somente, qual era a realidade da sociedade: a rua me ensinou qual era a minha realidade.
Inerte, em frente ao espelho, lembrei-me de uma mensagem cristã que havia escutado no ano anterior. O ministrante dizia que, a caminho do local onde ocorrera a palestra, parara o carro em um semáforo e, dali, avistara um boteco (pequeno bar, birosca) – “típico lugar no qual se encontram pessoas vazias, vivendo sua vida vazia“. Ele continuou seu discurso comparando a vida sem Deus a uma “vida de boteco“ – mesmo que no melhor shopping ou restaurante, mesmo que em um ambiente limpo, perfumado, com pessoas bem vestidas, elegantes, ainda assim, era uma “vida de boteco“. Porque a vida sem cumprir o desejo de Deus é vazia, vã – um fútil proceder (1 Pe 1: 18). Não é questão de pecado apenas, é questão de maneira de viver. Recordando tais palavras, percebi que meu viver estava sendo como de boteco. Um boteco até que confortável, com pessoas agradáveis, com educação, cultura e até mesmo com minha Bíblia. Mas ainda assim, um boteco.
“sabendo que não foi mediante coisas corruptíveis, como prata ou ouro, que fostes resgatados do vosso fútil procedimento que vossos pais vos legaram, mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o sangue de Cristo” (1 Pe 1:18-19).
Geração após geração o legado é o mesmo: o fútil procedimento. Fútil significa, também, superficial; e a palavra grega usada para ela é μάταιος (mátaios), a qual também pode ser traduzida por “vã“, que significa vazia. O sangue vertido por Jesus em sua obra redentora na cruz, não apenas nos redimiu os pecados, como também nos resgatou do fútil procedimento que nos foi legado pelos nossos pais.
Cristo nos libertou de ter uma vida vazia, uma “vida de boteco”; Ele nos libertou de uma vida superficial.
Mas então, por que, mesmo sendo regenerados, ainda podemos viver no fútil procedimento? Porque toda vez que deixamos de viver no novo homem, Cristo, o último Adão, estamos no velho homem, o primeiro Adão (1 Co 15:45-49; Ef 4:22-24), sujeitos a esse legado e, portanto, esse é nosso modo de vida. A solução é viver em Cristo, sendo imitadores de Deus, andando em amor, como Cristo nos amou (Ef 5:1-2). Nós, como servos, devemos ter o mesmo sentimento que houve Nele (Fp 2:5). Anunciar o evangelho, cuidar de pessoas, compadecer-se delas, obedecer ao Pai com humildade… assim agiu o Senhor Jesus enquanto viveu aqui como homem (Mt 9:35-38; Fp 2: 6-9, 14-15). O viver sem hipocrisia e amando com amor fraternal não fingido (1 Pe 1:22) é o desejo de Deus.
As palavras que um dia visualizei num status de determinado perfil no Facebook, “tenho entendido duas coisas sobre o amor: que amar é ir e amar é dar“, converteram-se, então, em verdade para mim. Descobri como posso demonstrar a Deus, de verdade, que O amo. Ir para a rua me ensinou a não querer ser superficial e, o mais importante, fez-me perceber e renunciar a minha “vida de boteco“. Eu escolhi ir para rua! E você, ainda tem um procedimento fútil, vazio, mesmo sem pecar? Quer deixar de ter um viver superficial? Tenho algo para lhe dizer: vá pra rua; a rua ensina! Vamos aprender juntos!
Ao irmão que me disse para ir para rua: agradeço por me alertar quanto a superficialidade, por me ajudar a crescer e pela frase que postou em seu status no Facebook.
Ao irmão que ministrou a mensagem citada no texto: agradeço por se permitir ser usado por Deus como um ministro da Palavra, pela simples analogia que fez com 1 Pe 1:18 e a “vida de boteco” e por ser para mim um tutor e curador.