O racismo é um dos grandes problemas da humanidade. Ao longo dos séculos causou terríveis injustiças, opressão e mortes, e ainda é responsável por grandes males atualmente. Quando nos deparamos com situações de racismo, nosso coração dói, lamentamos, choramos, nos compadecemos de quem é vítima desse terrível ato. Racismo é crime e uma atitude moralmente repugnante.
Mas o racismo é pior do que isso. E nós, como cristãos, devemos ir além do âmbito moral e perguntar: O que a Bíblia diz sobre esse assunto? Como podemos lidar com esse problema à maneira de Cristo? E como a missão da igreja se relaciona com esse tema? Responderemos a essas e outras perguntas neste artigo.
A visão bíblica do ser humano
Criados à imagem de Deus
A Bíblia declara que o homem foi criado “à imagem de Deus” (Gn 1:26, 27). Essa característica foi corrompida, mas não se perdeu após a Queda. Como vemos em menções posteriores à Queda, o homem ainda é a imagem de Deus (Tg 3:9). Isso confere à vida humana dignidade e um valor especial, pois carrega em si um elemento de semelhança com Deus, a imagem de Deus. Elemento que está intimamente ligado à missão de representá-Lo na terra e estabelecer Seu reino aqui. Por ser a imagem de Deus, a vida humana é sagrada.
Tal característica é intrínseca a todos os seres humanos. Independente de sexo, etnia, origem, classe social ou qualquer outra classificação que se possa fazer. Todos somos criados à imagem de Deus, igualmente dignos e merecedores de respeito. Portanto, quando um ser humano se sente superior a outro, mais digno e o subjuga, está cometendo pecado contra Deus, pois afronta a sabedoria com que Ele nos criou.
Uma só origem
Assim foi dito do homem na criação, a partir da qual se originou todas as famílias da terra. É dessa forma que a Bíblia apresenta a humanidade, como tendo uma mesma origem: Adão e Eva. Em Gênesis 1 vemos claramente esse fundamento, que é ampliado em Gênesis 10, onde, após a queda e o dilúvio, os descendentes de Noé se dividiram “segundo as suas famílias, segundo as suas línguas, em suas terras, em suas nações”. Ao discursar a filósofos em Atenas, Paulo faz referência a isso: “de um só fez toda a raça humana para habitar sobre toda a face da terra” (At 17:26). Assim vemos a Bíblia descrever a história da humanidade. Como disse David Platt, autor cristão norte-americano, há “uma unidade básica por trás da diversidade mundial”. Pessoas com diferentes cores de pele, formatos de rosto, alturas, tipos de cabelo, linguagens e culturas, se originaram todas do primeiro casal.
Reconhecemos e celebramos essa unidade, que nos mostra que todos possuímos igual valor. Mas isso quer dizer que nosso comportamento deve ser o de ignorar ou menosprezar as diferenças étnicas? Não, muito pelo contrário! Podemos perceber a beleza da multiforme sabedoria de Deus (Ef 3:10) manifesta na diversidade com que Ele nos criou e glorificá-Lo por isso, vivendo em união. A diversidade das características humanas glorificam a Deus!
Cristo, judeus e gentios
Durante Seu ministério na terra, Cristo apresentou ensinamentos significativos contra o preconceito étnico existente na época. Havia um preconceito histórico que dividia nações. Os judeus se consideravam especiais por terem sido a nação separada por Deus para receber Suas bênçãos e muitos se ensoberbeceram, considerando os demais povos como inferiores. Eles não se misturavam com as outras nações, os “gentios”. Não tinham qualquer convívio social com eles, apenas relações comerciais.
Mas Deus havia separado o povo de Israel e prometido abençoá-los com o propósito de que essa bênção se estendesse para muito além deles. Ele disse: “… todas as famílias da terra serão abençoadas por meio de ti” (Gn 12.3). Outras passagens no Antigo Testamento reiteram essa promessa. Deus mostra Seu desejo de que as nações O conheçam e experimentem Sua graça (como no Salmo 96, por exemplo).
Deus também deu leis ao povo de Israel a respeito do tratamento correto dos estrangeiros que viviam em seu meio. Ou seja, aqueles vindos de outras terras, membros de outras nações, culturas e/ou etnias diferentes. Os israelitas haviam sido exilados por séculos no Egito e, logo após Deus os libertar, Ele lhes ordena: “Não maltratarás o estrangeiro, nem o oprimirás, pois fostes estrangeiros na terra do Egito” (Êx 22.21). Deus diz que “faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro, dando-lhe pão e vestes” (Dt 10.18). Assim Ele põe o estrangeiro entre os grupos mais vulneráveis do povo de Israel, aqueles que deveriam ser cuidados e protegidos. Por meio dos profetas, Ele condena a ação do povo para com eles: “O povo[…] tem agido com opressão [para com o] pobre e [o] necessitado”, diz Deus, “e tem oprimido injustamente o estrangeiro” (Ez 22.29; veja também Jr 7.6; Zc 7.10).
Mesmo tendo recebido essas instruções, os judeus tratavam outros grupos étnicos e povos com desprezo. O preconceito dos judeus existia até mesmo em relação aos samaritanos, um povo mestiço entre judeus e gente da Babilônia. No capítulo 4 do evangelho de João, Jesus quebra esse preconceito ao conversar com uma mulher samaritana e, em seguida, pregar aos samaritanos que viviam naquele lugar (além de se hospedar com eles). Noutra ocasião, Jesus contou uma parábola em que o herói era um samaritano, que ajudava um judeu que havia sido espancado por assaltantes. Assim Jesus nos deixa a mensagem de amar o próximo, não importa quem ele seja (Lc 10:30-37). Além dos samaritanos, Jesus também pregou a outros gentios, como cananeus, gregos e romanos.
“Jesus choca o sistema preconcebido de seus discípulos judeus, não apenas morrendo em uma cruz e ressuscitando da sepultura, mas também lhes ordenando que proclamem ‘o arrependimento para perdão de pecados a todas as nações’ (Lc 24.47). Jesus veio não apenas como Salvador de Israel; Ele veio como Salvador e Senhor de todos.”
(Contracultura – David Platt).
O problema da humanidade e sua solução
Com a queda, a natureza pecaminosa passou para todos os seres humanos (Rm 5:12). Por isso, a Bíblia afirma que toda a humanidade é pecadora, sem esperança de justificar a si mesma e distante de Deus.
“Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer (…) pois todos pecaram e carecem da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus.”
Romanos 3:10-12, 23.
Jesus ensina que os males que vemos na sociedade são procedentes do coração corrupto do ser humano:
“Porque do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias.”
Mateus 15:19.
Entretanto Deus mesmo providenciaria a solução para salvar a humanidade da condenação do pecado e reconciliá-la Consigo. Veja o que afirma a epístola aos Colossenses:
“porque aprouve a Deus que, [em Cristo], residisse toda a plenitude e que, havendo feito a paz pelo sangue da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, quer sobre a terra, quer nos céus. E a vós outros também que, outrora, éreis estranhos e inimigos no entendimento pelas vossas obras malignas, agora, porém, vos reconciliou no corpo da sua carne, mediante a sua morte, para apresentar-vos perante ele santos, inculpáveis e irrepreensíveis.”
Colossenses 1:20-22.
Um pouco mais adiante, vemos que pessoas de diferentes povos, origens, etnias e condições sociais foram incluídos na obra redentora de Cristo, recebendo o novo nascimento e a graça de fazer parte de Seu povo.
“e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou; no qual não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos.”
Colossenses 3:10-11
Nessa comunidade diversa, que aprende com as diferenças e vive em amor sem qualquer discriminação por causa delas, Cristo é manifestado.
A missão da igreja
A reconciliação trazida por Cristo resultará na plena união entre Deus e a humanidade redimida. Sua obra nos permite caminhar em direção à total conformidade com Seus princípios. Assim podemos cumprir os dois grandes mandamentos: amar Deus acima de todas as coisas e amar o próximo como a nós mesmos (Mateus 22:37-40).
Cristo preparou o caminho para tal reconciliação, derrubando o muro da hostilidade entre judeus e gentios, fazendo dos dois uma única humanidade e estabelecendo paz entre eles, agora reconciliados como família de Deus (Efésios 2:11-19). A reconciliação é uma manifestação da presença de Deus no mundo, um testemunho de sua ação no meio de seu povo. Por isso, os cristãos nunca devem estar de acordo com quaisquer barreiras destrutivas e desumanizantes construídas por uma pessoa (ou grupo de pessoas) contra outra, sejam elas cristãs ou não.
A missão da igreja neste mundo caído é realizar o trabalho de Cristo: o ministério da reconciliação.
“Ora, tudo provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo e nos deu o ministério da reconciliação, a saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação. De sorte que somos embaixadores em nome de Cristo, como se Deus exortasse por nosso intermédio. Em nome de Cristo, pois, rogamos que vos reconcilieis com Deus.”
2 Coríntios 5:18-20.
Veja como essa missão é confiada à igreja. Os cristãos devem ser embaixadores, representantes de Cristo, anunciando a mensagem da reconciliação ao mundo.
A reconciliação e a busca pela justiça andam juntas. Para haver reconciliação, primeiro o pecado precisa ser nomeado, devidamente julgado e condenado. Mateus 5:6 diz que bem-aventurados são aqueles que têm fome e sede de justiça. Essa justiça é a justiça de Deus. Como cidadãos do Reino devemos ansiar pela justiça Dele e não podemos aceitar o pecado. Cristo é a justiça de Deus. Apenas Ele é capaz de solucionar o problema do pecado no mundo. Portanto, nós que temos fome e sede de justiça, temos fome e sede de apresentar Cristo à humanidade, para que possam se arrepender dos seus pecados, ser salvos e viver uma nova vida.
Assim, é preciso ensinar as pessoas a respeito de Deus, dos pecados e exortar com sabedoria aqueles que os praticam. Quem está em pecado precisa receber luz a esse respeito. Deus é luz. E Cristo disse que nós somos luz do mundo. Nosso papel é ser luz em meio às trevas. Em meio a uma sociedade pecadora, que ofende a Deus, afronta a forma sábia com que Ele nos Criou, devemos ser luz. Somos luz quando vivemos de acordo com o Evangelho e pregamos a Verdade. Pregar a Verdade envolve anunciar o que é pecado e qual a consequência dele.
Contudo, na busca por justiça, não devemos ser movidos por ressentimento, como, infelizmente, muitos são. Raiva, ira, ódio, ressentimento, nada disso traz a justiça de Deus. E apenas ela é a justiça real, pois é eterna e totalmente eficaz. Além disso, de acordo com a Bíblia, não somente racistas, mas todos os homens são pecadores e imerecedores de perdão. É Deus quem nos concede o perdão imerecido e nos provê a redenção.
Quando nos sentimos menos pecadores do que outros ou mais dignos por sermos moralmente melhores, também pecamos. Todos nós pecamos. O mesmo pecado habita em todo ser humano. E o mesmo Senhor derramou Seu sangue por todo tipo de pessoa com todo tipo de pecado. O sangue que nos redimiu e reconciliou é poderoso e eficaz para redimir todo tipo de pecador. Jesus cumpriu a justiça na cruz. Por isso é a cruz que anunciamos e é do sangue de Cristo que nos revestimos. Não produziremos paz com ódio, nem justiça com pecado. Revoltas, violência, ações destrutivas ofendem a Deus. Não queremos ofender a Deus e pecar contra Ele. Nosso papel como cristãos que amam o Senhor e conhecem a Palavra é, como já fora dito, mostrar a luz e anunciar a verdade.
Além disso, é preciso cooperar com as autoridades governamentais e cobrá-las, de maneira apropriada, para que apliquem a justiça humana. De acordo com a visão bíblica, esse é o papel que elas (não nós) devem cumprir (Romanos 13:3-4). E, se você se pergunta sobre o que fazer em situações em que presencia situações de racismo ou outra violência verbal, orientamos que em situações assim específicas você denuncie e deixe o Estado cumprir seu papel. Se houver risco à vida de alguém, como numa situação de violência física, você deve ajudar a fim de que a vida seja protegida. Apenas Deus tem autoridade sobre a vida humana. Portanto devemos protegê-la. E de acordo com esse mesmo princípio, não podemos concordar com punições aos culpados que sejam provenientes da nossa própria força e ira. A justiça dos homens é cumprida pelas autoridades e a de Deus é realizada por Ele.
A Palavra alerta: “a ira do homem não produz a justiça de Deus” (Tiago 1:20), e “não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor (…) Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem” (Romanos 12:19, 21).
Os pecados da humanidade foram julgados por Deus na morte de Jesus. Ele morreu por nós “enquanto ainda éramos pecadores” (Romanos 5:8). Assim, recebemos o perdão de Deus e o poder para viver uma nova vida por causa de Seu misericordioso movimento para restaurar a humanidade. A obra de Cristo nos ensina que nossa busca por justiça deve ser principalmente restauradora, em vez de retributiva, firmada na esperança da reconciliação que o evangelho gera, até mesmo entre povos inimigos.
Os profetas bíblicos eram pessoas que, movidas por Deus, denunciavam os pecados do povo. Mas eles anunciavam mensagens segundo o coração de Deus, com o objetivo de gerar arrependimento ou anunciar Seu julgamento. Se queremos lidar com esse assunto de acordo com os princípios divinos, precisamos nos submeter à transformação contínua que o evangelho produz, a fim de tratar qualquer ódio e ressentimentos presentes em nós em relação às injustiças do mundo. Então seremos capazes de nos posicionar da maneira de Cristo. Isso só é possível pela força do evangelho, que é poderoso para produzir redenção, reconciliação e justificação.
Se cremos no evangelho, sabemos que o pecado só será realmente eliminado do mundo no reino de Cristo. E cremos que somente o amor Dele nos capacita a vencer completamente todas as debilidades que temos para amar uns aos outros e deixar toda injustiça. Os compromissos do nosso coração devem ser com a história que o evangelho conta. Ele deve ser a bandeira que sustentamos.
Os cristãos no primeiro século influenciaram a sociedade com o evangelho (Atos 2:46,47; 17:6) e houve diversos outros momentos na história em que a igreja foi vista como um testemunho de amor e paz. Precisamos nos envolver com a Palavra de Deus e permitir que o evangelho permeie todas as áreas de nossa vida, a fim de influenciar os círculos à nossa volta também nos tempos atuais. As boas obras resultantes do amor de Deus em nós comunicarão Cristo e levarão os homens a glorificá-Lo (Mateus 5:16).
Conclusão
A Palavra de Deus apresenta explicações sobre a origem, natureza e propósito do ser humano. Toda a humanidade foi criada à imagem de Deus, possui dignidade e deve ser tratada com respeito. O problema que acometeu a humanidade também é explicado pela Bíblia: o pecado. Este é a fonte de todas as injustiças que percebemos na sociedade.
Mas a Palavra também apresenta a solução do problema: a redenção de Cristo. Somente Sua obra pode resgatar a humanidade da condenação do pecado. Em sua vinda, Ele eliminou as barreiras entre judeus e gentios e entregou à igreja o ministério da reconciliação. Assim, a igreja deve cumprir esse ministério, manifestando a reconciliação obtida por Cristo para esse mundo caído, até o dia em que a obra Dele será plenamente manifestada, e seus redimidos de toda tribo, língua, povo e nação estarão com ele, em paz, para sempre (Apocalipse 5:9).
Agradecemos ao irmão Ezra Ma pela atenção concedida durante a elaboração deste texto. Ele abordou este e outros assuntos de nosso tempo em uma live que você pode assistir neste link.
Fontes que ajudaram a compor este artigo:
Lausanne Movement: Reconciliation as the Mission of God (an excerpt)
Livro: Contracultura – David Platt.